segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A filosofia a serviço da vida

Li essa entrevista na Revista Lola de dezembro e gostei muito do viés por meio do qual o papel da religião é abordado (e por um ateu)!
De minha parte, creio ser necessário cultivar espiritualidade, fé... mas isso, até que possamos fazer nossas escolhas e caminhar com nossas próprias pernas, deve nos ser transmitido de alguma forma... 
Enfim, leiam e tirem suas próprias conclusões:

Alain de Botton: a filosofia a serviço da vida



O filósofo Alain de Botton na escadaria da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro (foto: Orestes Locatel)

Ele se assume um escritor de autoajuda, e com orgulho. Diz fazer parte do renascimento do gênero, renegado ao limbo intelectual no século XIX, com o advento das universidades modernas, e dominado nas últimas décadas por mercenários vendedores de fórmulas milagrosas – e obviamente irreais. Para o filósofo suíço radicado em Londres Alain de Botton, o ser humano precisa mais do que nunca que alguém lhe diga como lidar com a vida e com o desespero: não com promessas de grandes conquistas, mas com a constatação de como somos infortunados e infelizes. E não só isso. Precisa aprender a viver em comunidade e que alguém lhe diga como se comportar. Precisa que a voz doce e grave de uma religião lhe faça agir como uma criança obediente. “Nós somos todos vulneráveis e infantis por dentro. E, como crianças, precisamos ser lembrados do que é bom para nós”, diz. São lições como essa que ele dá em Religião para Ateus (tradução de Vitor Paolozzi, Intrínseca, 272 páginas, 19,90 reais), livro recém-lançado no país e que Botton aproveitou para divulgar em sua passagem pelo Brasil – onde participou do seminário Fronteiras do Pensamento, na última semana, e tanto se admirou com a arquitetura do Rio como se chocou com as disparidades sociais e o urbanismo de São Paulo. “Algumas elites são refinadas em um nível tão alto como só podem ser em sociedades profundamente desiguais: São Paulo”, escreveu em seu perfil no Twitter, para desgosto dos paulistanos.

No livro, o último de uma vasta e bem vendida obra, o filósofo examina princípios de três religiões – Catolicismo, Judaísmo e Budismo – para pinçar lições de vida para seus leitores. Segundo ele, o padrão intelectual hoje dominante na sociedade empurra a muitos para a secularidade, em prejuízo de conceitos e ideias de origem religiosos benéficos à vida individual e coletiva. Visto com cautela por uns, incensado por outros, Alain de Botton discorre sobre como as religiões e a filosofia podem nos ajudar a viver, discurso presente tanto em seus livros como em suas entrevistas. Confira abaixo sua conversa com VEJA Meus Livros.
 
No começo de Religião para Ateus, você diz que os ateus têm exagerado no intelectualismo e na racionalidade e que, para eles, ler um livro de autoajuda se tornou algo absurdo. O senhor é a favor dos livros de autoajuda?
O ponto de partida das religiões é que somos crianças e que precisamos de orientação. O mundo secular em geral se ofende com isso. Essa postura ofendida pressupõe que todos os adultos são maduros e devem odiar o didatismo, a orientação e a instrução moral. Mas é claro que somos crianças, grandes crianças que precisam de orientação, de guias que nos lembrem como devemos viver, embora o sistema de educação moderna negue isso, ao nos tratar como seres demasiadamente racionais, razoáveis e controlados. Nós somos muito mais desesperados do que o nosso sistema de educação reconhece. Todos estamos à beira do pânico e do terror quase todo o tempo – e a religião reconhece isso. Nós precisamos construir uma consciência semelhante a esta no mundo secular. Em meu livro, eu defendo que a fé em Deus não é plausível e, para mim e outros, é simplesmente impossível.
 
Como não ter fé e usufruir da sabedoria ofertada pelas religiões?
Eu sugiro que, se você abdicar da sua fé, vai se abrir para uma série de perigos particulares, nos quais não precisamos cair e aos quais temos que ficar alertas. Em primeiro lugar, tem o perigo do individualismo: o lugar do ser humano no centro de tudo. Em segundo, o perigo do perfeccionismo tecnológico, da crença na tecnologia e na ciência como remédio para todos os problemas humanos. Em terceiro lugar, sem Deus, corremos o risco de perder perspectiva e de ver o presente como tudo, de esquecer a brevidade do momento e de deixar de apreciar – no bom sentido – a minúscula natureza das nossas realizações. Por último, sem Deus, há o risco de a necessidade de empatia e ética seja negligenciada. Agora, é importante ressaltar que é bastante possível não acreditar em Deus e não perder de vista essas questões – da mesma forma como um crente pode ser um monstro. Eu simplesmente quero chamar atenção para algumas carências que surgem em nossa sociedade quando dispensamos Deus bruscamente. Nós podemos renunciar à fé, mas não devemos abdicar da simpatia, do cuidado do pensamento. Quanto à literatura de autoajuda, ela está na base desse mundo e eu a acho interessante.
 
O senhor se considera um autor de autoajuda?
Não há gênero literário mais ridicularizado que a autoajuda. Admita que você recorre a títulos do tipo e você vai atrair a suspeita e a fúria de todos os que querem ser vistos como cultivados. Para piorar, como se estivessem imbuídos da missão de negar à categoria um traço que seja de respeitabilidade, os editores de autoajuda cobrem os livros com horrendas capas sensacionalistas e os vendedores, nas livrarias, os escondem perto da seção de obras sobre mente, corpo e espírito, onde eles se misturam a uma indistinta massa de espinhas roxas e rosa. Mas não foi sempre assim. Por dois mil anos na história ocidental, o livro de autoajuda foi o produto máximo da realização literária. Os antigos eram particularmente adeptos. Na Grécia, Epicuro escreveu cerca de trezentos livros de autoajuda e falou de quase todos os temas, como o amor, a justiça e a vida. Em Roma, o estoico Sêneca escreveu conselhos de como lidar com a raiva (no ainda muito legível Sobre a Raiva), com a morte de uma criança (Consolação de Marcia) e como superar reveses políticos e financeiros (Carta para Lucilius). E não seria injusto descrever as meditações de Marco Aurélio como um dos melhores textos de autoajuda já escritos, tão relevante para quem enfrenta uma crise financeira quanto para quem vive a a desintegração de um império.

Então, o que explica a visão que se tem hoje do gênero?
Um fator importante foi o desenvolvimento do sistema universitário moderno, que em meados do século 19 se tornou o principal empregador de filósofos e intelectuais, já não mais recompensados por suas ideias uteis ou consoladoras, mas pelos dados precisos que forneciam. Teve início aí uma obsessão com a exatidão da informação e uma aversão ao conceito de utilidade. A ideia de se formar um filósofo ou historiador, a fim de se tornar um sábio – algo inteiramente natural para os nossos ancestrais – passou a ser risível, irreal e adolescente. Ao mesmo tempo, e com contribuição desse sistema universitário moderno, a sociedade se secularizava e entendia que o ser humano poderia administrar por conta própria as questões relativas à vida e à morte. Bastava confiar no bom senso, ter um bom contador e consultar um médico competente, de acordo com a fé na ciência. Os cidadãos do futuro não precisariam ler textos que lhes dissessem como permanecer calmos ou livres de ansiedade. Universidades, embora comumente descritas como as novas igrejas, deixaram de oferecer aquilo em que as religiões sempre focaram: a salvação da alma. Em vez disso, elas simplesmente nos introduziram a um mundo governado pela informação. Vá a uma universidade hoje na esperança de encontrar respostas para os grandes dilemas da vida e os acadêmicos vão rir de você. Ou chamar uma ambulância.
 
E assim a autoajuda foi abandonada aos tipos curiosos que fazem sucesso atualmente: gente que reveste a mensagem cristã para nos prometer o céu financeiro se acreditarmos em nós mesmos, tivermos fé, trabalharmos duro e não nos desesperarmos. Ou àqueles com um conhecimento passageiro de budismo, psicanálise ou taoísmo. O que une os adeptos modernos é o seu feroz otimismo. Eles supõem – o que é grave – que a melhor forma de ajudar alguém é dizer que tudo ficará bem. Eles estão totalmente distantes do espírito de seus mais nobres antecessores, que sabiam que o caminho mais eficaz para fazer alguém se sentir bem é dizer que as coisas estão tão ruins quanto antes ou piores do que eles jamais haviam imaginado. Ou, como Sêneca coloca: “Que necessidade há de chorar por partes da vida? Ela inteira se chama lágrima”.
 
Há lugar para a autoajuda no mundo atual?
Nós hoje precisamos de livros de autoajuda mais do que nunca, então parece muito triste que os nossos escritores mais sérios desdenhem do gênero e que a própria ideia de dizer algo “útil” para o leitor tenha se tornado uma banalidade. Vinte Dicas de Otelo sobre Relacionamentos pode parecer um título – e um projeto – ridículo para um livro, mas imagine que obra seria se Carlyle, Emerson ou Virginia Woolf a escrevesse. Em meio à nossa atual confusão moral e prática, a autoajuda está clamando para ser resgatada e reabilitada. Eu estou orgulhoso de fazer parte dessa nova fase da autoajuda.
 
Em Desejo de Status, você lembra que Schopenhauer preferia a solidão à vulgaridade. Já em Religião para Ateus, você diz que é melhor viver em comunidade do que sozinho. Qual opção é a mais acertada?
Acho que o nosso desejo de comunidade é muito profundo – mas há diferença entre comunidade e opinião pública. Viver sob o julgamento dos outros – especialmente da imprensa – é um tipo de pesadelo. Comunidade é o oposto disso, é ter vizinhos, pessoas que você conhece, amigos de verdade. Disto todos precisamos.
 
Há uma passagem interessante em seu novo livro, em que você diz que hoje é difícil fazer amigos depois dos 30 anos de idade. A solidão é maior nos dias atuais?
Talvez. Nós podemos viver perfeitamente bem no nosso canto a maior parte da nossa vida. Antigamente, nós éramos forçados a interagir com familiares e amigos, porque havia trabalhos como construir casas que precisavam ser feitos em grupo. Agora, você pode ser independente, o que é tanto motivo de celebração como razão para tristeza. Lembre-se ainda de que a solidão também é importante por muitas razões. Não há românticos maiores que aqueles que não têm com quem compartilhar seu romantismo. É quando estamos nas profundezas da solidão, sem a distração do trabalho ou dos amigos, que podemos compreender a natureza e a necessidade do amor. É depois de um final de semana em que o telefone não toca, em que cada refeição é retirada de uma lata e consumida na presença desalentadora da TV, que conseguimos entender o que Platão quis dizer quando escreveu que um homem sem amor é uma criatura pela metade.
 
Em Religião para Ateus, você tira lições do Catolicismo, Judaísmo e Budismo, mas especialmente das duas primeiras doutrinas. Por quê?
Eu gosto da estrutura dessas religiões: o mundo secular acredita que, se nós temos boas ideias, iremos lembrá-las quando for preciso. As religiões não pensam assim. Elas constroem calendários que não nos deixam esquecer datas e conceitos importantes. É para isso que servem os rituais: eles procuram manter vivas coisas que já sabemos que existem, mas das quais podemos nos esquecer. Além disso, as religiões enxergam o ser humano para além do racional, como uma criatura também física e emocional e que precisa ser seduzida pelo corpo e pelos sentidos, não apenas pela mente. Esta sempre foi a grande saca do Catolicismo. Se você quer mudar a cabeça de alguém, não adianta focar apenas as suas ideias.

No livro, você defende o paternalismo como uma solução para nós, diz que poderíamos ser mais nobres uns com os outros se fôssemos controlados. Isso não faria de nós seres infantis? Não seria melhor, para amadurecer, fazer o que Freud metaforicamente chama de “matar” o pai?
Nós somos todos vulneráveis e infantis por dentro. E, como crianças, precisamos ser lembrados do que é bom para nós. Sabemos o que é bom, mas esquecemos. O problema do homem sem religião é que ele se esquece com facilidade das coisas. Nós todos sabemos em teoria que devemos ser bons. O problema é que, na prática, não lembramos. E não nos lembramos disso porque o mundo secular moderno sempre acha que é suficiente dizer algo a uma pessoa uma única vez – seja bom, cuide dos pobres etc. É o oposto do que dizem as religiões: elas insistem que as pessoas precisam de lembretes frequentes, diários ou até mesmo de hora em hora.

Por que nós precisamos de controle?
Nós somos muito frágeis. Toda vez que alguém fala de controle, as pessoas lembram de Hitler e Stalin. Não é por aí. Nós podemos ter moralidade pública sem fascismo, podemos até ter certos tipos de censura (por exemplo, em torno da pornografia) sem ditadura, assim como podemos ter uma grande arquitetura que não seja feita para engrandecer um regime político. É fato que as pessoas ficam assustadas com certas tendências do século XX, mas não devemos ser sempre tão despretensiosos quanto ao que podemos fazer. Nós não precisamos nos entregar ao livre mercado capitalista, sob a liderança espiritual de televisão por cabo.
 
Não existe ética desvinculada da religião?
Nós já superamos a época dos gurus e líderes espirituais. Atualmente, é mais convincente pensar que cabe a cada um de nós adaptar os valores implícitos nas religiões ao nosso dia a dia. Nós podemos contribuir para a construção de novos templos na condição de indivíduos comprometidos e interessados. A salvação da alma de cada um continua sendo um problema sério, até mesmo quando se ignora a existência de Deus. No século XX, o capitalismo foi capaz de sanar os problemas matérias de boa parte da Humanidade. Mas as necessidades espirituais continuam imersas no caos e a religião falha em satisfazer essas necessidades. Esse é o motivo pelo qual eu escrevi meu livro para mostrar que ainda existe um caminho a ser descoberto capaz de disseminar os princípios religiosos no mundo moderno sem apelar para o ocultismo espiritualizado.
 
O senhor diz que os casamentos não dão certo por que as pessoas esperam ser felizes. O que devemos, então, esperar do casamento?
Os casamentos cristãos e judeus, embora nem sempre modernos, são pelo menos vistos como uma salvação contra a impressão errônea de que é errado ou injusto ser infeliz. O Cristianismo e o Judaísmo tratam o casamento como um mecanismo pelo qual os indivíduos assumem uma postura adulta perante a sociedade e não como uma união definida por algo subjetivo. Essa expectativa limitada tende a evitar a ideia de que cada um poderia ter um estilo de vida mais emocionante e interessante. O ideal religioso diz que atritos e momentos de tédio entre os casais não são sinais de que algo não vai bem na vida conjugal, mas sim de que a vida corre de acordo com o previsto.
(por Maria Carolina Maia)

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