"Não me refiro aos monitores da molecada, que acordam às três horas da manhã já com um pique tamanho que só faltam fazer 160 abdominais e 210 flexões de braço enquanto constroem uma casa na árvore; nem àquele amigo do seu amigo que não tinha barraca, e você mui misericordiosamente abriu um espaço para ele na sua, mas o sujeito ronca, baba e tem chulé; ou àquele cara que acha que manja tudo de vida no campo, leva uma churrasqueira jumbo, empesteia o ar com a fumaça de lingüiça e deixa garrafas pet vazias pelo caminho.
O verdadeiro carrasco do acampamento é uma pessoa que, por trás das aparentes boas intenções para com seus semelhantes, guarda uma malvadeza, uma crueldade, um sadismo sem parâmetros.
Mas ao contrário do carrasco da firma, figura diabólica que já conhecemos e que tem como campo de atuação tão somente a firma em si, o carrasco do acampamento não precisa necessariamente estar em um acampamento. Ele pode estar na praia, na serra, no sítio, na quadra do colégio, no churrasco de domingo e no aniversário de sua prima. E o pior: ele pode estar ao seu lado sem que você sequer desconfie.
Você bem que estranhou aquele incauto chegando com uma mala grande, pensou “nossa, o que será que ele carrega?”, mas deixou para lá. Afinal, não é da sua conta, certo? Errado. Pois a coisa começa a ser da sua conta quando o carrasco do acampamento (ou da praia, ou do sítio, ou do churrasco) finalmente revela sua verdadeira e terrível identidade.
Sim. O moço do violão.
E então antes que você consiga gritar “salvem-se todos!” e sair em disparada, o moço do violão saca de seu instrumento, senta-se se pernas cruzadas na relva, dá uma afinada (rápida, porque o violão meio desafinado faz parte do plano maligno), fecha os olhinhos, suspira profundamente, faz uma pausa estratégica e começa, a plenos pulmões... “É preciso amaaaaaaar as pessoas como se não houvesse amanhãããããã/ porque se você paraaaaaaar pra pensar/ na verdade não háááááá”. Daí você sabe que está condenado o resto do evento, do passeio ou da viagem, a ouvir grandes clássicos da música interpretados por um cidadão que parece ter acabado de comprar uma daquelas revistinhas “Aprenda a tocar violão”, com o Belchior na capa.
Por que você está condenado? Porque as pessoas que foram com você – e que ou dependem de sua carona, ou você depende da carona delas – estão agora todos em volta do moço do violão, como as vaquinhas e carneirinhos do presépio ao redor do Menino Jesus. Tal qual o flautista de Hamelin, aquele cuja melodia hipnotizava e atraía os ratos, o moço do violão hipnotiza e atrai diversos ouvintes.
E eles acabam ficando tão cúmplices que, como se não bastasse apenas um cantando mal, de repente são quinze cantando mal. Em coro. Tipo no fatídico momento de “Andança”. Enquanto o moço do violão entoa o refrão, o povo em volta faz o backing-vocal “Amoooor/ Amooooooor/ Me leva amooooor”. E finalmente, todos unidos: “Por onde for quero ser seu paaaaaaaaaaar”.
Você alcança a cerveja mais próxima porque decide que sóbrio não vai dar para agüentar a empreitada. E quase tem ganas de atirar a latinha de alumínio vazia na cabeça do infeliz que grita, lá do meio, “Toca Rauuuuul!”. O moço do violão, fingindo ser uma alma caridosa, atende: “Eu sou a luz das estrelas/ Eu sou a cor do luar/ Eu sou as coisas da vida/ Eu sou o medo de amaaaaar”.
E você tem vontade de gritar “Você é um chato, isso sim!”, mas tem receio de parecer anti-social. Então, conformado com sua triste sina, você se senta junto ao rebanho ao som de “Eu vou ficaaaaaaaaaar ficar com certeza maluco beleeeeeeeza”. Uma hora o martírio vai terminar, é só tentar focar em outras coisas. Concentração, vamos. Pense em um bosque tranqüilo, uma bica de água fininha, bem ao longe...
Mas aí você é tragado novamente à perdição terrena quando o moço do violão começa baixinho “Um dia me disseram/ que as nuvens não eram de algodão/ Um dia me disseram que os ventos às vezes erram a direção” e você pensa sozinho com seus botões que quem errou de direção foi você, indo parar naquele programa de índio. De índio mesmo, porque agora inventaram de fazer uma fogueira para compor o cenário do moço do violão. Para o fogo de índio virar fogo de satanás é um pulinho – na verdade, o tempo exato para que um dos presentes apareça com uma gaita para acompanhar as músicas, surgindo assim mais uma figura do apocalipse.
Sim, o moço da gaita.
Ele entra nas músicas na hora errada, mas quem liga? Tá tudo tão paz e amor, bicho.
Em seguida a dupla lapidada no mármore do purgatório, o moço do violão e o moço da gaita, engatam uma da Elis Regina. Mas o moço do violão só sabe metade da música. Não faz mal, começar pelo ápice é bacana, todo mundo sabe essa parte e canta juntinho.... “Já faz tempo eu vi você na rua, cabelo ao vento, gente jovem reunidaaaaaa/ Na parede da memória essa lembraaaaaaaaança é o quadro que dói mais/ Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudotudotudotudo o que fizeeeeeemos/ Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos paaaaaais”. Uma menina com cara de integrante do centro acadêmico da “Fefeleche” (faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP), saia indiana, sandália de couro e mochila peruana, acende o isqueiro e balança a chama ao vento.
Acha que acabou, malandro? Que nada! Chegou a vez dos hits internacionais! Começa com “Aaaaaai uana nooooooou/ revi iu ever sin de rein...”, emenda com um “Uldi iu nou mai neime/ Ifa só iu in réven”, segue com um “Uelcome tu de hotel Califóóóórnia/ satcha loveli pleice”, mantém o ritmo com “Noque noque noque on de révens dór”, continua com um “Na na na nananana nananana, rei jude” e terminando, obviamente, no auge, com qualquer uma do Bob Marley, de preferência “No Woman No Cry”, assim é possível fazer um medley com Gilberto Gil. Só então, finalmente exausto e rouco, lá pelas quatro da manhã, o moço do violão, sob palmas da platéia, abraça o moço da gaita como se fossem amigos de infância (acabaram de se conhecer, mas a música une as pessoas, né), bota seu instrumento de volta na mala e segue em direção ao luar.
(lembrei desse "conto" das irreverentes meninas
do já extinto blog Garotas que Dizem Ni
do já extinto blog Garotas que Dizem Ni
- cujas postagens, inclusive, transformaram-se
no delicioso livro É Impossível Comer um Só -
no delicioso livro É Impossível Comer um Só -
depois de ler o último post do Paulo.
É isso aí, Paulinho, continue "arrasando" no violão!!! rsrsrs
É isso aí, Paulinho, continue "arrasando" no violão!!! rsrsrs
Não fiques chateado, sabes que eu te adoro, né?!
Mas foi irresistível! rsrsrs Beijos, querido!)
Mas foi irresistível! rsrsrs Beijos, querido!)
Muito bom o conto, querida Lú.
ResponderExcluirUm abração. Tenhas um lindo dia.
Baaaaaaaaaaaaaaaaaaaaahhh Lu, mas só hj é que fui ver o texto e a dedicatória...hahahha
ResponderExcluirNão vou dizer que seja diferente, mas na hora do porre é impressionante como tudo fica afinado e lindo.
Me diz uma coisa, por acaso tu guarda bonbons no teu armário? Me responde por email que depois te explico.
bjuuus
Obrigada, Dilmar! Tb acho esse conto mto divertido!
ResponderExcluirPaulinho, sem comentários, meu! E eu ainda te falei desse post... aiai...
Já mandei o mail!
Beijos aos dois!