quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Doçura

"Eu nunca disse que feminilidade e masculinidade são exclusivamente biológicas.
A diferença sexual é demasiado essencial, demasiado onipresente, para não se explicar sempre e simultaneamente pelo corpo e pela educação, pela cultura ao mesmo tempo em que pela natureza. Mas a cultura também é real. “Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher”? É evidentemente menos simples que isso. Nascemos mulher ou homem, depois nos tornamos o que somos. A virilidade não é nem uma virtude nem uma falta. Mas é uma força, assim como a feminilidade é uma riqueza (inclusive nos homens), e uma força também, mas diferente. Tudo em nós é sexuado – salvo a verdade, insisto -, e tanto melhor. Que diferença é mais rica e mais desejável?
Mas voltemos à doçura. O que ela tem de feminino, ou que assim parece, é uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera. É o que ouvimos tão bem em Schubert, o que temos tão bem em Etty Hillesum.
A doçura é antes de tudo uma paz, real ou desejada: é o contrário da guerra, da crueldade, da brutalidade, da agressividade, da violência… Paz interior, e a única que é uma virtude. Muitas vezes permeada de angústia e de sofrimento (Schubert), às vezes iluminada de alegria e de gratidão (Etty Hillesum), mas sempre desprovida de ódio, de dureza, de insensibilidade… “Aguerrir-se e endurecer-se são duas coisas diferentes”, notava Etty Hillesum em 1942. A doçura é o que as distingue. É amor em estado de paz, mesmo na guerra, tanto mais forte quanto é aguerrido, e tanto mais doce. A agressividade é uma fraqueza, a cólera é uma fraqueza, a própria violência, quando já não é dominada, é uma fraqueza.
E o que pode dominar a violência, a cólera, a agressividade, senão a doçura? A doçura é uma força, por isso é uma virtude: é força em estado de paz, força tranquila e doce, cheia de paciência e de mansuetude. Veja-se a mãe com seu filho (“a doçura é toda sua fé”). Veja-se Cristo ou Buda, com todos.
A doçura é o que mais se parece com o amor, sim, mais ainda que a generosidade, mais ainda que a compaixão. Aliás, ela não se confunde nem com uma nem com outra, embora na maioria das vezes as acompanhe.
A compaixão sofre com o sofrimento do outro; a doçura se recusa a produzi-lo ou a aumentá-lo.
A generosidade quer fazer bem ao outro; a doçura se recusa a lhe fazer mal.
Isso parece ser favorável à generosidade, e talvez o seja. Quantas generosidades importunas, porém, quantas boas ações invasoras, esmagadoras, brutais, que um pouco de doçura teria tornado mais leves e mais amáveis? Sem contar que a doçura torna generoso, pois é fazer mal ao outro não lhe fazer o bem que ele pede ou que poderíamos fazer. E que ela vai além da compaixão, pois a antecipa, pois não precisa dessa dor da dor… Mais negativa talvez do que a afirmativa generosidade, porém mais positiva também do que a compaixão totalmente reativa, a doçura mantém-se entre as duas, sem nada que pese ou ostente, sem nada que force ou que agrida.
Eu citava, a propósito da pureza, a notável fórmula de Pavese, em seu Diário: “Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza, sem que o outro se sirva dela para afirmar sua força.” Era querer ser amado puramente, dizia eu; era querer também ser amado com doçura, isto é, ser amado.
Doçura e pureza andam juntas, quase sempre, pois a violência é o mal primeiro, a obscenidade primeira, pois o mal faz mal, pois o egoísmo, corrompe tudo, é ávido, indelicado, brutal…
Que delicadeza, ao contrário, que doçura, que pureza, na carícia da amante! Toda a violência do homem vem morrer aí, toda a brutalidade do homem, toda a obscenidade do homem… “Minha doçura”, diz ele, e é uma palavra de amor, a mais verdadeira talvez, e a mais doce…[...]"
(André Comte-Sponville em Pequeno Tratado das Grandes Virtudes)

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