sábado, 25 de setembro de 2010

Felicidade

"No papel, em termos conceituais, é simples. Todo o sofrimento humano, não importa qual seja, resulta de uma incongruência entre a nossa vontade e desejos, de um lado, e o curso dos acontecimentos que nos afetam, de outro. Como lidar com a discrepância entre aspirações e realidade? Há dois modos básicos de reduzir ou anular essa incongruência. Um deles é adaptando e moldando os nossos desejos ao curso dos acontecimentos; e o outro é transformando as circunstâncias com que nos deparamos de modo a que atendam aos nossos desejos.
Os filósofos estóicos, como se sabe, eram grandes entusiastas do primeiro caminho. Como as circunstâncias com as quais nos deparamos não estão sob o nosso controle e como o mundo é regido por leis que independem de nossa vontade, só nos resta submeter e adaptar o que está à mercê da nossa vontade, ou seja, os nossos desejos e aspirações, ao curso dos acontecimentos. “O benéfico e o prejudicial”, observa o “iluminista cético” David Hume sobre esta estratégia, “tanto de ordem natural como moral, são inteiramente relativos ao sentimento e ao afeto humanos. Nenhum homem jamais seria infeliz se ele pudesse alterar os seus sentimentos; como Proteus, ele se furtaria de todos os ataques por meio das contínuas alterações de sua forma e feitio”. Ou como sugere Epicteto, o escravo coxo que abraçou o estoicismo e virou guru do imperador romano Marco Aurélio, “não são as coisas em si mesmas que inquietam os homens, mas as opiniões que eles formam sobre estas coisas”. A aceitação dos nossos limites pessoais e humanos, a autodisciplina interior e a pacificação dos desejos pela reflexão filosófica e a vida contemplativa são o segredo de uma existência plena, harmoniosa e serena. “Quereis só o que podeis e sereis onipotentes.” Amorfati.
Pois bem, onde fica o iluminismo? A estratégia iluminista, penso, é o avesso radical do ideal estóico. Em vez de buscar a libertação da tirania dos desejos sobre o espírito dos homens, tratava-se de libertar os desejos, ou seja, insuflar e dar livre curso a  certos impulsos e fantasias dos homens, especialmente no campo das aspirações de ganho monetário e consumo material, e de transformar o mundo para garantir a sua máxima satisfação. O ideal iluminista reflete, em suma, uma barganha faustiana — vender a alma ao demônio em troca de poder sobre o mundo. Ele representa uma aposta monumental na conquista da felicidade pela crescente, violenta e sistemática subjugação do mundo natural aos propósitos e caprichos humanos. A palavra de ordem é dominar a natureza. “No princípio era a ação.”
A referência de Priestley a Francis Bacon, no texto que foi distribuído, é perfeita. Foi na filosofia renascentista de Bacon e Giordano Bruno que surgiu esta idéia terrível de que torturando e bulindo experimentalmente com a natureza nós conseguiríamos arrancar dela os seus segredos; de que ao possuí-la e subjugá-la nós poderíamos vencer a escassez e submeter o mundo aos nossos desígnios e vontades; e de que desse modo poderíamos recriar pelo engenho e sagacidade um novo “jardim das delícias”, um paraíso tecnológico de turbinas, robôs, viagras e disneylândias no qual “o homem se faria a si próprio um deus sobre a Terra” (Bruno). As sementes plantadas no renascimento vingaram e medraram nesta ejaculação vulcânica da libido dominandi que foi o iluminismo europeu. A colheita, porém, não deu os frutos pretendidos."

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