sábado, 5 de junho de 2010

Mistérios gozosos

“Uma coisa especial ocorre com a mulher depois que ama.
Reparem, estou dizendo, depois que ama.
Não estou me referindo a ela enquanto está no ato do amor.
Disto se pode falar também, e a literatura a partir do romantismo e depois o cinema, modernamente, já tentaram de várias formas simular na relação amorosa como a mulher suspira, se contorce, desliza as mãos e entreabre a boca do corpo e da alma.
Mas, quando digo "depois que ama", refiro-me ao estado de graça que a envolve após o gozo ou gozos, e que perdura horas e horas e às vezes dias.
Fica macia que nem gata aos pés do dono.
Mais que gata, uma pantera doce e íntima.
Sua alma fica lisinha, sem qualquer ruga.
A vida não transcorre mais a contrapelo.
Desliza.
Ela tem vontade de conversar com as flores, com os pássaros, com o vento.
Sobretudo, descobre outro ritmo em sua carne.
É tempo do adágio, de calma e fruição.
Neste período, aliás, o tempo pára.
Em estado de graça ela se desinteressa do calendário.
O cotidiano já não a oprime.
As tarefas da casa, pesadas em outras ocasiões, tornam-se leves, os compromissos mais enjoados podem ser acertados, as tragédias dos jornais já não lhe dizem tanto respeito.
O trabalho do escritório torna-se leve, pode ser feito quase cantando.
Algumas desenvolvem uma súbita necessidade de tecer, outras de aninhar.
Querem bordar, costurar, arrumar coisas na casa, entram em clima de nidificação.
É a hora de uma ociosidade amorosa.
Outras querem presentear o amado e o mundo com pratos sutilíssimos e saborosos.
O fato é que a mulher nessa atmosfera sai do trivial, se angeliza e glorificada, pervaga pela casa.
O homem, animal desatento, às vezes não se dá conta.
Em geral, nunca se dá conta.
Ou dá-se conta nos primeiros minutos após o ato de amor, e depois se deixa levar pela trivialidade, deixando-a solitária em sua felicidade clandestina.
Na verdade, ela sobrepaira ao tempo, está adejando em torno do amado, que deveria suspender tudo para sentir desenhar-se em torno de si esse balé de ternura.
Deveria o homem avisar ao escritório: hoje não posso ir, estou assistindo à reverberação do amor naquela que amo.
E como isto se assemelha à floração rara de certas plantas, os amados deveriam interromper tudo: seus negócios e almoços e ficarem ali, prostrados, diante da que celebra nela o que ele ajudou a deslancha.r
Já vi algumas mulheres assim.
Era capaz de pressentir a 115 m que elas estavam levitando de tanto amor que seus amados nelas desataram.
Há uma coisa grave na mulher que foi ao clímax de si mesma. Que não esteja distraído o parceiro ou parceira.
Ela tem mesmo um perfume diverso das demais.
É um cio diferente.
É quando a mulher descerra em si o que tem de visceralmente fêmea, tranqüila que, mais que possuída, possui algo que atingiu raramente.
As outras mulheres percebem isto e a invejam.
Os machos farejam e se perturbam.
É como se estivessem num patamar seguro a se contemplar.
É quase parecido a quando a mulher vive a maternidade.
Mas aqui é ainda diferente, porque na maternidade existe algo concreto se movimentando dentro dela.
Contudo, nessa atmosfera que se segue a uma epifânica sessão de amor, é diverso, porque ela está acariciando uma imponderável felicidade.
Estou falando de uma coisa que os homens não experimentam assim.
O gozo masculino é mais pontual e parece se exaurir pouco depois do próprio ato.
Só os escolhidos, os de alma feminina, vez por outra, o sentem prolongar-se dentro de si.
Mas em geral, é diferente.
Terminado o ato, uns até rolam para o lado e dormem como se tivessem tirado um fardo do ombro, outros acendem o cigarro, vestem suas ansiedades e voltam ao trabalho.
É constatável, no entanto, que o homem apaixonado também transmite força, alegria, energia.
Ele oscila entre Alexandre o Grande e o artista que chegou ao sucesso.!
Também brilha.
Mas é diferente.
E não é disto que estou falando, senão do gozo feminino que não se esgota no gozo e se derrama em gestos e atenções por horas e dias a fio.
Freud andou várias vezes errando sobre as mulheres e, por exemplo, colocou equivocadamente aquela questão de que a mulher teria inveja do homem por ser este um animal fálico, etc.
Convenhamos: inveja têm (e deveriam ter) os homens quando prestam atenção no fenômeno que ocorre com as mulheres, que ao serem amadas atingem o luminoso êxtase de si mesmas, como se tivessem rompido uma escala de medição trivial para lá da barreira dos gemidos e amorosos alaridos.
É isso: quando a mulher foi amada e bem amada, ela ingressa nessa atmosfera sagrada, cuja descrição se aproxima daquilo que as santas estáticas descreveram.
Uma aura de mistérios as envolve.
E isso, por não ser muito trivial, por não ser nada profano, talvez se assemelhe aos mistérios gozosos de que muitos místicos falaram.”
(Affonso Romano de Sant'Anna)

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