sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Para a Simone e para todas nós, mães!

Se você ainda acredita em sacrifícios incondicionais, é bom descer logo desse altar. Quem faz apenas o possível respira mais aliviada - e cria filhos mais felizes




Não, doutor Freud não tinha razão quando dizia que somos "por natureza" masoquistas. Não somos capazes de encontrar prazer na dedicação absoluta aos filhos, consagrando todas as horas do dia a limpar, aquecer, distrair, alimentar e fazer dormir. Hoje sabemos disso, mas, algumas gerações atrás, as mulheres descontentes com esse esquema eram tachadas de "anormais".
Como foi ficando cada vez mais difícil corresponder aos modelos de perfeição ou de "normalidade", a raiva tomou conta de muitas de nós. Mas senti-la provocava mais culpa. Não é à toa que às vezes sucumbimos, odiando os filhos e a nós mesmas por não sermos um exemplo de benevolência - ao contrário, não raro perdemos a paciência por problemas prosaicos, que nos testam todo dia.
O maior desafio da mulher ainda é conseguir aceitar os próprios limites. "O que sempre dificultou nossa vida foi o fato de termos assumido muitos papéis", frisa a psicoterapeuta junguiana Lucia Rosenberg. "Como esses papéis são muito recentes, a culpa nos acompanha no horário comercial e nas happy hours. Pelos padrões seculares, deveríamos estar vendo a lição ou assando bolo..."
Mas nós mudamos e, graças às feministas, que chamaram o instinto materno de "enorme pilhéria", pudemos respirar mais aliviadas, reconhecendo que o amor de mãe é apenas um sentimento humano e, como todo sentimento, incerto, frágil e imperfeito. Ah, que alívio poder existir fora da fôrma, desenvolvendo relações mais transparentes com nossos filhos, sujeitas a altos e baixos, como todo vínculo humano honesto e verdadeiro.
Foi assim que conseguimos virar a página e deixar de viver a maternidade como obrigação, sabendo que não há comportamento materno suficientemente unificado que permita falar de instinto ou atitude universal. "As mulheres que se recusam a sacrificar ambições e desejos ao maior bem-estar do filho são demasiado numerosas para ser classificadas como exceções patológicas que confirmariam a regra", diz a escritora francesa Elisabeth Badinter em seu livro Um Amor Conquistado: o Mito do Amor Materno (Nova Fronteira), em que joga a pá de cal definitiva sobre a idéia da mulher "anormal", ou seja, aquela que escapa ao molde da santa senhora.
Desdobráveis, sim, heroínas, não Claro que algumas de nós conseguem desempenhar com certo talento e sem muito stress a dupla jornada de trabalho. Afinal, a maternidade é um dom, e não um instinto, e como tal há quem o possua - ou não. No rol das bem-dotadas está a mineira Ana Cecília Carvalho, 52 anos. Psicanalista, escritora, professora universitária e mãe de dois filhos, ela credita o sucesso da sua empreitada à mãe, seu grande exemplo. "Só me dei conta de que minha mãe não era igual às outras quando passei a freqüentar a escola, em meados dos anos 50. Descobri, então, que ela era a única, entre as mães da turma, que trabalhava fora e tinha uma carreira. Isso passou a ser motivo de orgulho para mim. Dela herdei a idéia de que ser mãe é nutrir com amor. Mais do que uma memória, essa é a base da minha identidade e é também o que me inspira no dia-a-dia na sala de aula, no trabalho no consultório, em cada texto que escrevo."
Ana Cecília reconhece que nem sempre a situação é amena e sem sacrifícios. "Todas as mães vivem algum sentimento de culpa, porque, embora tenham capacidade de se desdobrar, não conseguem evitar os conflitos com os filhos." Desdobráveis, sim, mas não heroínas a ponto de dar conta de tudo ao mesmo tempo e sempre. Há momentos em que a gente entra em parafuso mesmo. Foi o que aconteceu com Juçara Costta, 52 anos, artista plástica, dois filhos, que em meio a uma grande crise depressiva resolveu entregar Décio, 3 anos, e Gustavo, 1 ano e meio, ao pai, de quem já havia se separado. "Não quis mais que as pessoas interferissem no meu encontro com a arte, que todos consideravam uma bobagem. Diziam que eu deveria me contentar com o marido maravilhoso e os dois filhos lindos. A repressão à minha carreira e a culpa por eu não estar agradecida a tudo o que a vida tinha me dado me levaram ao desespero."
Juçara tomou essa medida com a certeza de que tanto a família de seu ex-marido quanto a sua teriam estrutura para acolher as crianças. "Não abandonei meus filhos. Ao contrário: achei que eles não mereciam viver a dor daquele momento. Preferi ficar sozinha, mas sabia que, um dia, eles voltariam e me encontrariam pronta para dar a eles o que mereciam. Foi o que aconteceu."
Com a ajuda da psicanálise, Juçara conseguiu se aprumar. "Décio já estava com 13 anos quando começou a ir aos meus vernissages e às peças de teatro em que eu atuava como atriz. Um dia, pediu para voltar a morar comigo. Mudei toda a minha vida para recebê-lo. Logo depois veio o Gustavo. Aos poucos, fui reconstruindo a relação com os dois - hoje ela é amorosa e sem traumas. Considero-me amiga dos meus filhos. Tenho um profundo respeito por eles. Estou certa de que valeu muito mais ser uma mulher verdadeira do que uma mãe perfeita."
Que tal chamar o pai? Livres do script viciado, podemos recusar a vida de sacrifício. Ainda bem, porque quem entra nessa pelos filhos cobra no fim, com juros e correções, toda a energia gasta. Afinal, ninguém é santa. A salvo desse engano, precisamos ainda corrigir outro pequeno desvio comum em nosso caminho: a mania de achar que, instintivamente, sabemos cuidar melhor das crianças do que os homens. E já não é sem tempo de mudar, pois, nesse item, muitas mulheres desafinam. "Desde bebê, a mãe desautoriza o pai com frases do tipo 'dá que eu carrego; você não tem jeito pra dar comida; olha como segura o nenê no banho'", diz Lucia Rosenberg. "Se, em vez de estragar a relação dos filhos com o pai, as mulheres ajudassem a fortalecê-la, bingo! As crianças com certeza ganhariam com isso - e a mãe também, pois acabaria economizando tempo e dinheiro. A intimidade e o amor entre eles não seriam afetados desde que tivessem base sólida", afirma a psicoterapeuta.
A secretária Jogma Ribeiro Fernandes, 35 anos, dois filhos, dá a prova de que a coisa funciona - ela conta tanto com o apoio do marido como dos filhos. Jogma não se cobra o papel de ser a "sábia" da casa nem vê problema em não se dedicar inteiramente à maternidade. "Independentemente de ter filhos, eu sou mulher. Há momentos para ser mãe, profissional, esposa e amante. Vivo cada um deles, sem dramas, pois tenho dois filhos saudáveis e responsáveis e um marido presente, o que me libera para exercer todos os outros papéis." Ela diz que Olbe, seu segundo marido, pai de Victor, "sempre trocou fralda, levantou de madrugada, deu banho, comida. Nos finais de semana, por exemplo, é ele quem vai para a cozinha fazer pratos deliciosos. Vivemos um novo modelo de família, com os meus, os seus e os nossos filhos."
Assim, vemos que o amor não é mais privilégio das mulheres e que os novos pais podem se dar aos filhos com a mesma intensidade, ajudando efetivamente na sua criação. "Acredito que as atuais formatações familiares auxiliam ao oferecer pluralidade de modelos às crianças", comenta Lucia. "Hoje existem pais que ficam em casa enquanto as mães saem para o trabalho; namorados ou novos maridos que ocupam o lugar de modelos masculinos alternativos para os filhos; madrastas que mudaram de cara e podem ser grandes aliadas. Quanto menos rígido e cristalizado for o padrão familiar, mais possibilidades de gingar teremos todos." Então, como o balanço é brusco, diário e exige jogo de cintura, como você anda de suingue, mamãe?
Com amor e sem receita
A jornalista Déa Januzzi, 51 anos, conta neste artigo exclusivo a sua experiência de maternidade. Autora do livro Coração de Mãe (Editora Leitura), ela assina todo domingo uma coluna sobre o tema no jornal Estado de Minas.
Não tenho receita nem fórmula mágica para educar filho. Tem dias que quero fugir para bem longe. Sou canceriana, signo da Lua e das águas profundas, mas, às vezes, queria estar em Marte. Em outros dias, o sol brilha - e a mesma mãe que esbraveja também dança ao som de Bob Marley quando o filho chega inteiro da rua e liga o som. Aí, é dia de calmaria, pois a mesma mãe que sofre porque o filho atravessa a madrugada sabe também que é cheia de falhas e se lembra de quantas vezes deixou de telefonar para a própria mãe quando era adolescente. Essa mãe que se descabela com a violência nas ruas, com as drogas, com o perigo na esquina, que se culpa por ter se separado do marido quando o filho ainda era pequeno é a mesma que exorciza os seus demônios, que tem imenso prazer de ver o garoto buscar o próprio caminho. É a mãe que vê no filho a esperança de um mundo melhor. Nessas horas, vejo que não existe fórmula. Que o meu filho tem muitas mães; que ele aprende o melhor com a avó, com as tias, as primas, as minhas amigas e as dele. Que tem respeito pelas mulheres, porque eu o criei com toda a delicadeza e poesia que existem dentro de mim. E que ele também pode ter muitos pais para se identificar. Pode ser o avô, que continua vivo em seu coração apesar de ter partido há mais de 20 anos; seu professor de biodança; ou mesmo o pai, que, apesar da falta da convivência diária, está presente em algum canto secreto do seu coração. Ser mãe do Gabriel é um aprendizado diário. Aprendo coisas que não encontrei em livro nenhum. Pratico a maternidade como um exercício de liberdade. Somos amigos, acima de qualquer definição. Não imponho regras, tenho a liberdade de dizer o que penso. E ele faz o mesmo. Às vezes, gritamos um com o outro, trocamos palavras ásperas, afiadas, porque não vivemos num paraíso. Mas como é mágica essa relação! Ser mãe me redimiu, exorcizou os meus fantasmas, descortinou a janela secreta da minha alma feminina, por onde entram os ventos curativos da maternidade.
(Revista Cláudia - maio de 2004)

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